A Bandeira do Elefante e da Arara

A Bandeira do Elefante e da Arara

A primeira vez que ouvi falar de que havia uma obra chamada A Bandeira do Elefante e da Arara, demorei até mesmo pra entender do que se tratava. É animação? HQ? Jogo? Livro? E como assim elefante?!

À medida que as informações foram chegando, não melhorou. Soube que se tratava de um livro de fantasia baseado na época dos bandeirantes. Mas como assim o autor é um americano? O livro foi traduzido pro português? E que diabos de elefante é esse?!!

Então, organizando as ideias: Christopher Kastensmidt é um americano que mora em Porto Alegre desde 2001 e trabalha com o desenvolvimento de vídeo games, roteiros etc. A empresa do qual era sócio-diretor foi comprada pela Ubisoft. Apaixonado pela temática folclórica, começou a publicar uma série de contos encadeados em uma revista americana com a Bandeira do Elefante e da Arara, chegando a ser finalista do Prêmio Nebula. O primeiro conto, O Encontro fortuito de Gerard van Oost e Oludara, deu origem a uma adaptação para os quadrinhos e a Devir chegou a publicar os três primeiros em uma série de livros de bolso. Veio então o livro inteiro, em dez capítulos.

Cada capítulo é uma história fechada, como um conto. Entre um e outro há uma passagem de tempo. Por isso a narrativa é bem corrida e direta, sem maiores arroubos literários, mas muito divertida. E termino aqui a minha análise como leitor comum, pois, pra mim, é impossível comentar o livro de qualquer outra perspectiva se não a de autor, mestre e jogador de O Desafio dos Bandeirantes.

Qualquer jogador de RPG entendeu o meu último comentário, mas as semelhanças entre uma obra e outra vai muito mais além da ambientação fantástica no Brasil ainda a ser explorado por bandeiras lusitanas. O boitatá está lá. O saci está lá. O capelobo, o curupira, a iara… Mas não é só isso. A estrutura narrativa dos capítulos, a forma como os perigos são apresentados, a relação entre os personagens, como eles escapam do sufoco, as soluções encontradas, tudo funciona como uma sessão de RPG. Ler A Bandeira do Elefante e da Arara é como ouvir um amigo contando a aventura do último final de semana. E isso é muito legal!

É bem provável que Kastensmidt nunca tenha jogado DdB, mas acho pouquíssimo provável que não tenha jogado RPG, ou mesmo a própria bandeira do Elefante e da Arara. Até mesmo a percepção anacrônica dos personagens principais em relação a sua época é típica do que ocorre em uma partida de RPG. Tal anacronismo costuma ser criticado em filmes e livros, mas não em uma sessão do jogo.

Em termos narrativos, o maior destaque vai para a forma como o autor descreve as batalhas contra as criaturas fantásticas, transmitindo toda a dificuldade e tensão da cena. É de um realismo que me causa inveja. Você quase sente a baba do monstro escorrendo em seu braço. Ele transmite a dificuldade encarada pelos personagens de forma tão precisa que cada confronto ganha contornos épicos. Outro destaque está na verdade das relações entre os personagens. Mesmo numa narrativa ligeira, é possível sentir o amor ou o ódio entre eles. Por fim, a forma como é mostrada a magia indígena dos pajés e dos Jesuítas, com muita sensibilidade e sutileza. Mesmo nessas horas é possível imaginar qual magia do DdB o personagem usou naquele momento.

Ainda que haja alguns desacertos históricos, ora bolas, é fantasia! A única coisa que realmente me incomodou é que o protagonista, o holandês Van Oost, um homem de virtude e moral inquebrantável, é o único representante dos calvinistas. Como a sociedade católica portuguesa é mostrada em toda sua contradição e hipocrisia, passa a ideia de que que os protestantes possuem uma superioridade moral em relação aos católicos. A história se passa entre 1575, três anos após a Noite de São Bartolomeu, e 1580, quando as coroas portuguesa e espanhola se fundiram. A única nota mostrando algo negativo dos calvinistas é uma rápida menção a assassinatos cometidos por eles antes do massacre em Paris.

Pra contrabalançar, a questão do racismo é bem resolvida. Oludara não é um mero sidekick do branco europeu, como um Tonto dos bandeirantes. O africano, ao ter a sua liberdade, pode tomar o seu próprio rumo a qualquer momento. E o holandês, mesmo quando seria conveniente, se recusa a deixar que Oludara seja visto como um escravo seu. O mesmo ocorre com os Tupinambás e demais tribos.

No lançamento da Devir ano passado, vinha o anúncio de um boardgame. Mas eis que o RPG é lançado primeiro. Pois é, no próximo sábado haverá o lançamento carioca do RPG da Bandeira do Elefante e da Arara na Livraria Cultura. A conferir.

E o elefante? Ora, leiam o livro…